Sem Manual de Instruções (IV)
Mas antes, ainda tinha que atravessar o resto daquele dia, feito quase noite quando cheguei a casa, mesmo a tempo de ouvir os vaticínios de desgraça que o meu atraso provocara, com a consequente retirada estratégica para o quarto logo a seguir ao jantar, a pretexto de longos trabalhos de casa. Lá para as dez da noite, havia de ser reclamada ao telefone para ouvir a irmã mais nova da Margarida chorando convulsivamente enquanto me perguntava o que acontecera nessa tarde na escola. Como podia eu saber se não tinha saido com ela após a última aula e até esse momento nada me parecera anormal? A Margarida chegara esbaforida depois de ter percorrido os dois quilómetros que a separavam de casa manifestamente a correr como uma desesperada, entrara em casa, atirara com a pasta dos livros para o chão do quarto e desaparecera. Só no fim do jantar, estranhando a excessiva ausência, a família a procurou por toda a casa e arredores, vindo a encontrá-la caída, desmaiada na pequena arrecadação que o pai utilizava como improvisada adega. Ao seu lado, as três garrafas vazias explicavam o estado semi-comatoso da Margarida que fora levada para o hospital, onde se encontrava à hora em que eu recebia o angustiado telefonema da irmã a que acrescia uma informação que a minha mãe se esquecera de me dar: a Margarida tinha passado por minha casa a seguir às aulas e, não me encontrando, resolvera voltar à escola para ver se me descobria. Teria descoberto? E que pensamentos lhe teriam atravessado a mente? Há coisas de que nunca se chega a ter consciência a não ser que se nos atravessem no caminho. A minha amiga, que eu já conhecia há tanto tempo, vinha, compulsivamente e cada vez com maior frequência, abusando de todas as bebidas alcoolicas que apanhava o jeito e eu, na maior das ignorâncias, eu não via um palmo à frente do nariz. Eu nem via o que andava por ali a fazer, passeando pela vida com a ligeireza de que era capaz, sem perceber nada do drama que se desenrolava à minha volta e do qual participava, mesmo que contra vontade. Naquela noite, a Margarida não voltou para casa. Regressaria no dia seguinte e eu iria visitá-la para a ouvir suplicar-me que não contasse a ninguém o que se estava a passar. Não contei. Voltei para o meu quarto onde fiquei, como sempre, deitada de barriga para baixo em cima da cama, apoiada nos cotovelos, contando mentalmente as florzinhas cor de laranja da colcha enquanto as lágrimas da minha impotência corriam livremente pela cara abaixo e os pequenos auscultadores ligados ao “Walkman” que a avó me oferecera pelo Natal deixavam entrar e ecoar pela minha cabeça os sons duros e metálicos, os gritos: “Agora, agora, tu és um Cavalo de Corrida!” |
FIM ( ou início de tudo, depende...)
2 Comments:
;-)
By Fénix, at 7:44 AM
Adorei. Agora, gostava de ler os restantes episódios :-)
By Anonymous, at 2:38 AM
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