APENASEU

Friday, December 08, 2006

Sem Manual de Instruções (II)

Pela minha parte, passei pelo menos dois anos completamente apaixonada pela inacessibilidade do Ricardo que se comprazia em me maltratar, num jogo sublime e dissimulado de sedução e abandono. Durante uma tarde, assistiamos a um jogo de futebol de salão e ele não tirava os olhos de mim, provocador. No fim acompanhava -me a casa e levava todo o caminho a exaltar a minha forma de estar na vida, a transparência das minhas palavras e do meu olhar e etc, etc, etc. No dia seguinte passava por mim com uma nova namorada e punha um sorriso do mais amarelo, deixando-me à beira das lágrimas...

A Margarida, deitada na minha cama, em cima da minha colcha de florzinhas cor de laranja a combinar com as cortinas, de barriga para cima e olhos no tecto, ouvindo-me, horas a fio, discorrer em variações sobre o tema Ricardo, o coração de Leão, de Onça, de Esfinge, de Pedra... E os olhos dela, postos em mim, através de mim, para lá de mim... Os olhos dela com as minhas lágrimas, com as minhas fúrias, com os meus ciúmes, com as minhas esperanças...e eu sem dar por nada, sem ver que as lágrimas dela não eram de solidariedade mas de desespero, que as suas fúrias, os seus ciúmes disfarçados de amizade não eram por mim mas de mim. E eu sem perceber que não era por feminismo que destilava tanta raiva contra o Ricardo, contra mim, por ser tão parva e “andar suplicante atrás de um gajo estúpido que não percebia a miúda fantástica que podia ter”. Era, claramente, por amor, um amor tão trágico como o meu, ou pior ainda porque inconfesso e inconfessável e, acima de tudo, sem esperança.

Vingava-se seguindo-me para toda a parte, convidando-me para todos os passeios possíveis, para todas as festas que havia em sua casa (e tinha mais duas irmãs, adolescentes e namoradeiras, logo, a animação era muita, sobretudo nas férias, como acontece quando se juntam as rapariguinhas na vilas de província). Os meus pais não se opunham: a mãe dela estava sempre em casa, ela tinha mais três anos que eu, era boa rapariga, não andava de cabeça no ar atrás dos rapazes, “como certas pessoas”... E eu agradecia tratando-a mal, o pior possível, talvez por me sentir segura da sua amizade incondicional, para mim algo irracional, chamava-lhe “cola”, enxotava-a, pedia-lhe que me deixasse sózinha, que não viesse no dia seguinte, que desaparecesse, que fosse morrer longe... Tinha ataques de fúria quando ela me tentava abraçar ou me passava a mão pelo rosto para secar as minhas malditas lágrimas pelo Ricardo, sempre pelo Ricardo e nunca por aquele ombro amigo e desesperado que encontrava sempre ao meu lado, que vinha a correr sempre que lhe telefonava ou mandava recado por uma das irmãs. E eu, bruta, a queixar-me, muitas vezes, às irmãs que me olhavam com olhos redondos de espanto, talvez interrogando-se (será que ela não percebe ou faz que não percebe?). Mas não, de facto, eu não percebia, nem me sentia inclinada a perceber, aquela exclusividade afectiva tinha apenas o condão de me irritar profundamente e acho mesmo que teria passado muitos anos sem dar por nada se os acontecimentos, a determinado momento, não tivessem começado a escapar ao controlo de toda a gente, até se precipitarem de forma inegável e irrecusável...


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