Sem Manual de Instruções (III)
A tarde em que o Ricardo me beijou... É absurda a relevância com que a adolescência grava em nós recordações do mais completo disparate. Tinhamos saído das aulas e embora ele frequentasse o ano a seguir ao meu, consequência directa de algumas reprovações se tivermos em conta os quatro anos que separavam as nossas idades, havia dias em que descíamos juntos dos edifícios escolares em direcção ao Pavilhão Gimnodesportivo, situado na zona inferior da área escolar, próximo da estrada de terra batida que nos conduziria às nossas habitações. Como o Ricardo, para se dirigir a sua casa passava obrigatoriamente pela minha rua e em frente à minha porta era usual seguirmos juntos quando o horário escolar coíncidia e os seus desvarios amorosos o não faziam esgueirar-se por ruelas e travessas para evitar que a minha companhia lhe fosse indesejável. Mas acontecia e aconteceu num desses dias em que seguiamos em animada conversa, paramos junto ao Pavilhão e ali ficarmos, sentados num pequeno vão da escada lateral que levava à parte superior do ginásio. Os outros alunos foram saindo, descendo, passando e acabámos por ficar ali apenas os dois, rodeados pela calma luminosidade do entardecer. Não houve momentos mágicos nem emoções transcendentes, apenas, e mais uma vez, pura ignorância. A dada altura, a conversa derivou para os múltiplos e descomprometidos namoros cultivados pelo Ricardo que se justificava com a falta de personalidade e até de vergonha de algumas raparigas, demasiado disponíveis para relações de ocasião, sem compromissos, coisa que ele nunca pensaria fazer, só para dar um exemplo, comigo. Para ele as raparigas dividiam-se em dois grupos: aquelas com as quais só se poderia pensar em relações sérias e “respeitosas” (o que quer que isso significasse no seu vocabulário) e as outras. Deveria certamente, ter-me sentido bem por ele me classificar entre as primeiras mas naquela altura desejava sem dúvida alguma pertencer ao segundo grupo... Deve ter sido por culpa do Sol poente que reflectiu as lágrimas que brilhavam nos meus olhos e me impediram de responder a uma qualquer pergunta banal com que o Ricardo terminava o seu discurso. No momento seguinte as minhas faces ardentes estavam entre as suas mãos e os lábios seguiram os nossos instintos mais primários. Até que me levantei, talvez falando do adiantado da hora e do ralhete que a mãe teria já à minha espera, e lá seguimos sem mais palavras até nos separarmos à minha porta. Não havia nada a dizer nem nesse dia nem no dia seguinte, em que tudo voltou à rotina de sempre: os mesmos olhares, o mesmo “toca e foge”, que só havia de terminar no fim das férias grandes em que deixei a casa de meus pais para ir estudar para Lisboa.
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