APENASEU

Tuesday, June 30, 2009

Leituras...



MIA COUTO , Jesusalém ,Ed. Caminho, 2009

O "efeito subsídio de férias" começa a notar-se na minha biblioteca pessoal. Alguns títulos novos aguardam leitura e começo a chegar ao fim de outros, passe a antítese :).
Uma das recentes aquisições foi este magnífico romance de Mia Couto ( para falar verdade nunca li nada dele que não qualificasse de, pelo menos,fantástico, em todas as acepções da palavra).
Jesusalém não me desiludiu.A escrita de Mia Couto flui, prende o leitor e, em bónus, conta uma história. Uma? Não, muitas estórias numa história que é a de Africa, a do Mundo,em suma, a da humanidade. O século XXI, na literatura, parece-me cada vez mais ser,e muito no rescaldo do final do século passado, o século da consciência da morte. Cada vez mais, as melhores obras literárias, aquelas que valem a pena e que não estão condenadas a desaparecer com a moda, enformam numa reflexão sobre o que somos: solitários seres caminhando para e construindo a sua morte. Finamente, digo eu. Cada vez mais bichos, cada vez mais humanos, cada vez mais auto-conscientes. Vivendo com a ausência, com a solidão e com o espectro da morte. E só assim, ou por isso mesmo, mais felizes. Contrapondo à falsa felicidade eterna a felicidade efémera, talvez, mas presente.De tudo isto fala Jesusalém e muito mais. Todas as personagens são protagonistas, a todas o silêncio, a ausência, a solidão e morte atingem. Não é porém um romance que nos deixe angustiados, nada disso. Deixa-nos conscientes e mais, encantados, pois é de encantamento que tratam as obras de Mia Couto. Encantamento com a vida, com os outros, com os seres... como diz uma das personagens: A vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado.
E não poderia deixar de referir os belíssimos poemas que o autor escolheu para servir de intodução e mote a cada capítulo, grande parte da autoria de Sophia de Mello Breyner...
Como sugestão de leitura e, quiçá, futura troca de ideias, aqui ficam dois pequenos excertos - sem spoilers ;)
"
_Quer que vá buscar um balde de água?
_ Água? Para quê?
_ Não se está a lavar?

De súbito, a tristeza dela se quebrou: a portuguesa se abriu em uma gargalhada, quase me ofendendo. Lavar? Aquilo que fazia era aplicar cremes de protecção solar. Doenças que tivesse, ainda pensei. Mas não. A mulher disse que, nos dias de hoje, a luz estava envenenada.
_ Não aqui, minha senhora, não em Jesusalém.
A protuguesa encostou-se a uma trave de madeira, fechou os olhos e começou a cantarolar. De novo, o mundo me escapou. Nunca tinha escutado uma melodia assim, fluindo em lábios humanos. Eu ouvira pássaros, brisas e rios, mas nada se assemelhava àquela entoação. Para me salvar, quem sabe, desse embalo, indaguei:
_Desculpe, a senhora também é puta?
_ Como?
_ Puta?
- soletrei a custo."
(p. 156)
(...)

_ "Eu pergunto, meu filho: você não quer morrer comigo?
É a solidão o que mais tememos na morte, prosseguiu ele. A solidão, nada mais que a solidão. O olhar de Silvestre Vitalício era vago e vazio. De repente, me assustei: meu pai já não tinha rosto. Ele era só os olhos dele, lagoas sem margem, onde se precipitavam as nossas angústias.
_ O meu sangue é que faz correr o seu sangue, sabia?
Palavras que tinham o peso de uma sentença. A sua vida, como dizia Ntunzi, nunca me deixara viver.O estranho é que eu parecia estar morrendo na morte dele."
(p.227)

4 Comments:

  • O teu texto é uma excelente propaganda ao livro.
    Beijinhos.

    By Blogger João Roque, at 11:44 AM  

  • Obrigada, pinguim. Deduzo, então, que vais a correr ler :)
    Ah, pois, agora não tens tempo, andas muito ocupado ;) Maybe later...eh eh eh.
    Beijinh@s para os dois meninos *^*

    By Blogger S.M., at 4:59 PM  

  • Excelente análise de um livro que também me deixou maravilhada.
    Venho acompanhando a obra deste autor e, de livro para livro ele vai-nos surpreendendo com a magia dos «climas» que cria e com um superior manejo da palavra.
    Bela leitura que nós tivemos !
    Um abraço
    Nocturna

    By Blogger Nocturna, at 8:32 AM  

  • Eu li "Terra Sonâmbula", a vida no Moçambique pós colonial e consequente guerra fratricida, e adorei a sua forma de contar estórias, nomeadamente a criação de palavras que soam tão bem ao ouvido.

    By Blogger Lilith, at 8:37 AM  

Post a Comment

<< Home