APENASEU

Saturday, March 31, 2007

O cajado de Caeiro


A noite passada
visitou-me Alberto Caeiro,
a devolver-me as palavras
que inadvertidamente
tinham ficado esquecidas
por dentro do oco do seu cajado
de pastor pagão.

Durante quase vinte anos
incomodando o descanso do mestre.


Wednesday, March 21, 2007

No dia da poesia

Palavras

Passam por mim a correr as palavras,
Sílaba a sílaba, letra a letra,
Olham-me e fogem à minha frente
Para me obrigarem a correr por elas.
Vou-as agarrando uma a uma
Acariciando-as lhes explico o quanto as quero
Docemente as alinho e as ordeno
Tento prendê-las a mim como um amor perdido
Suplico-lhes que fiquem e me façam companhia...
Porque de palavras, este tempo que me passa
Porque com palavras, os ecos da memória
Porque no dia em que me abandonem as palavras,
Sílaba a sílaba, letra a letra,
Escorrerá o meu sangue lentamente
E nem a morte levará o pó do meu corpo
Desfeito já, nessa ausência de nomeá-lo.


© Reservados os direitos de autor
Foto: Reprodução de " Girassois", de Van Gogh

Sunday, March 18, 2007

O vírus escritor

Luis Rejano - Habitación de escritor con computer


O VÍRUS ESCRITOR

Não, não me sinto bem, é por isso que aqui estou, eu que sempre fui uma pessoa normal, bem, o que quer que isto queira dizer, não é? Sabe, todos queremos ter qualquer coisa de original na nossa vida, mas de preferência que não se note muito, que não nos afaste demasiado das nossas referências e da nossa pertença social, entende? Sim, mas como estava a dizer, nunca tive comportamentos esquizofrénicos, nem sequer tendências suicidas, nada que levasse a crer que um dia me ia acontecer uma coisa assim... É de loucos..., não, não faça esse ar distante, pode rir-se, até fico mais à vontade. Mas vou começar pelo princípio: como sabe, além de professor sou escritor, está aí na ficha, pois. Tenho algumas coisas publicadas, poesia, contos e vai sair agora o meu primeiro romance, terei muito gosto em lhe oferecer um exemplar autografado, com certeza, mas escrevi todos eles sem que se me deparassem mais do que os costumeiros problemas dos escritores, já vê, aqueles dias em que tudo corre mal, em que não gostamos de nada do que sai da nossa pena, isto éuma forma de dizer, uma sinédoque, pois, porque já há bastantes anos que escrevo no computador, directamente e depois ali trabalho os textos: altero, corto, reescrevo, é muito mais fácil, compreende? Às vezes a inspiração falta, as palavras faltam, as personagens parece que estão a brincar connosco: nós a querermos que elas sigam um caminho, que digam o que pensamos e elas a irem por outro lado, teimosas como crianças pequenas a dizerem-nos aquilo que não queremos ouvir...enfim, mas já me estou a afastar, é certo. O caso é que escrevo normalmente no computador, como qualquer cidadão comum, nem preciso de estar ligado à Internet, uso só aquele programa, o Word, conhece, também usa? Claro, e muitas vezes escrevo pela noite dentro, sempre gostei de escrever durante a noite, desde muito novo, também nunca tenho sono muito cedo, se calhar é porque bebo muito café durante o dia, bom, cafeína e nicotina são drogas, absolutamente, em todo o caso, fumo bastante, bebo café forte...pois, sei que é mau para a saúde mas que quer, olhe, todos temos um dia marcado e nisto dos vícios, o mal é começar... De qualquer forma, não costumo adormecer em frente ao computador, não, e também não sou nem nunca fui, que eu saiba, sonâmbulo. E há cerca de um mês, mais dia, menos dia, que ando a trabalhar num novo livro de contos, nada de muito elaborado, histórias simples de gente simples, retratos do quotidiano, do olhar em volta, está a ver o género? E havia uma dessas histórias, em particular que me andava a preocupar, sabe? É a história de um pintor, fazendo e refazendo a mesma tela há vários anos porque, desejoso de fazer o retrato perfeito da sua amada esposa, todos os dias, ou o acha indigno da beleza dela ou lhe parece que não conseguiu captar a melhor expressão do seu olhar.Vive assim obcecado pelos gestos e expressões daquela mulher que está a seu lado, de tal forma que não dá pelo passar dos anos e se esquece de o olhar verdadeiramente, de a ouvir, de a amar. E ela, feminina criatura, começa a escapar-lhe...e foi aqui que começaram a surgir-me dúvidas sobre o rumo que deveria dar à história. Quando isto me acontece costumo fazer uma paragem de um ou mais dias, compreende, e pelo meio vou escrevendo outras coisas, como que à procura de uma solução para o meu problema, digo-lhe, não é fácil ser-se narrador, há histórias muito ingratas, são como filhos pródigos obstinados em não regressar à casa paterna, se é que me faço entender. Enfim, nesse dia, já era tarde, resolvi ir deitar-me. Gravei o texto, desliguei o computador e disse para comigo, amanhã é outro dia, logo vejo como é que este tipo se vai sentir com o facto de a mulher lhe sair pela porta fora para se ir encontrar com outro, sim, que isso já se tornou por demais evidente, até para o mais distraído dos distraídos, tal como o é o meu angustiado pintor. Até aqui tudo se afigurava normal, não fosse o caso de que, no dia seguinte, achando ter encontrado a agulha neste palheiro, resolvo voltar ao texto inacabado e qual não é o meu espanto quando lhe encontro uma página processada, inteirinha, no seguimento da minha história e terminando com as palavras The End, assim, a negro e com maiúscula. Alguém está a gozar comigo, pensei eu, mas é claro que a curiosidade sempre foi mais forte que a indignação e eu resolvi ler o escrito pirata... e, olhe, espanto dos meus espantos, a história terminava bem terminada, eu não faria melhor... Sou bastante exigente na forma, no ritmo, no equilíbrio da frase, no estilo, está a ver? E fiquei satisfeito com o que li, repito-lhe, eu próprio não faria melhor; não me teria lembrado que o triste pintor, violentamente desperto do seu artístico estado de suspensão, em vez do trágico fim que eu lhe augurava, em vez do clássico tiro na cabeça ou da insanidade agravada pelo desgosto, podia encarar com alívio a partida da mulher e finalmente permitir-se acabar, com base na memória, o retrato tão longamente adiado. A sua exposição é um sucesso e o artista parte em viagem de término incerto, muito bem acompanhado pela galerista, antiga aluna sua que há muito vigiava suspirando a apagada carreira do pintor. Interessante e actual, não lhe parece? Ah, o meu tempo está a chegar ao fim? Pois bem, só lhe digo que esta partida me tem tirado o sono e dado dores de cabeça, já nem me consigo concentrar, tive de meter baixa na escola, não podia apresentar-me aos alunos neste estado de ansiedade e desorientação...Perco-me em raciocínios inconclusivos, já vê, eu vivo sozinho, ninguém entra em casa na minha ausência, das limpezas trato eu próprio, namoradas, não tenho tido nos últimos tempos, sabe, saio pouco, já não tenho paciência para relacionamentos fortuitos... enfim, tenho andado solitário e para mais só se acede ao computador mediante uma palavra passe, compreende, só de mim conhecida, garanto-lhe que de mais ninguém... O que me diz o Doutor? Será um vírus informático... parece-lhe? Não me tinha ocorrido, mas acha possível? Está bem, tomo estes comprimidos para ver se descanso e relaxo, sim e volto para a semana. Ah, e não penso mais nisto, bom, vou tentar mas olhe que agora nem consigo escrever, com medo que o tal vírus, como diz, se ponha a publicar os meus textos, ainda
para mais acabando-os com The End, e eu que nem estudei Inglês, sou licenciado em Português e Literaturas Clássicas e nunca consegui aprender essa língua intrincada. Boa tarde, muito obrigado, até outro dia, passe muito bem... vírus informático, com certeza... se lhe parece, estará muito bem.

© Reservados os direitos de autor

Monday, March 05, 2007

Da minha estante VI

SUGESTÃO

As companheiras que não tive,
Sinto-as chorar por mim, veladas
Ao pôr do Sol, pelos jardins...
Na sua mágoa azul revive
À minha dor de mãos finadas
Sobre cetins...

(Indícios de Ouro, 1914)



FIM
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes ­
Façam estalar no ar chicotes
Chamem palhaços e acrobatas.

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro ...

(Últimos Poemas, 1916)
Mário de Sá-Carneiro (1890-1916)

Thursday, March 01, 2007

Espero-te


De madrugada há um grito
Inaudível para os que, em sossego,
Retemperam alguma força
A aplicar na vanidade do dia
Seguinte.

Foi breve o torpor do corpo
Logo fisicamente lembrado
Do frio intenso da tua ausência.
Não há palavra suficientemente sinestésica
Para suportar a solidez sensível
De certas horas, violentamente paradas,
Porque desprovidas dessa linguística
Tranquilizadora do verbo sofrer.

Considero inútil qualquer poema
Que não seja pedra em sangue
Ou rio ardendo de seiva
E não me apetece gritar a ninguém
Que há nomes, substância e matéria
E tudo são palavras incompletas.

Real, só esse grito
Não palavra. Espera


© Reservados os direitos de autor
Foto: Pascal Renoux