APENASEU

Wednesday, November 29, 2006

Da minha estante II



os bantos e as aves


Junto da pobre praia sempre suja
onde é desconhecido o automóvel por dentro
ele repousa da sua longa miséria
ouvindo o pássaro-bicho canta que canta
mirando o rio-pluma desce que desce
o molhado batuque das cinturas
Sobre a areia da cerca canta que canta
ele repousa ignoto na sua mão
que não tem que fazer. Na sua aurora
que não tem que raiar. Na sua cama
vincada há dois mil anos para ele

Convém que seja noite porque ele ri
e o seu riso é uma coisa insuportável,
uma feérica praia muito limpa
coberta de pancada e de água escura
À entrada da cerca canta que canta
assomou para ele o noivo-noiva estranho
como o seu passo de um dia de descanso
seu riso de água doce pela boca
(na cinta a chibatinha e a lanterna
na mão os dedos com que guarda tudo)

“Condicionalismo económico! Condicionalismo económico!”
protesta o pássaro-bicho canta que canta
gorjeia o rio-pluma desce que desce
ao dente sexual do automóvel por dentro

No entanto eles entram na cubata
juntos repousam nus do mesmo inferno
seus corpos eriçados de diamante
seus olhos de murmúrio e de paciência
são uma grande selva inconquistável


Mário Cesariny , Pena Capital ( 1957)

Homenagem

Mario Cesariny ( 1923 - 2006)

MÁRIO CESARINY DE VASCONCELOS nasceu no dia 9 de Agosto de 1923 em Lisboa. Frequentou a Escola de Artes Decorativas António Arroio e estudou música com o compositor Fernando Lopes Graça.

Considerado o mais importante representante poeta português da Escola Surrealista, encontra-se em 1947 com André Breton, facto determinante no desenvolvimento do seu trabalho literário. Ainda nesse ano participa, junto com Alexandre O'Neill, António Pedro etc., no Grupo Surrealista de Lisboa.

Principal representante do Surrealismo português, Mario Cesariny, no início da sua produção literária, mostra-se influenciado por Cesário Verde e pelo Futurismo de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa.

Ao integrar-se no Grupo Surrealista, muda o seu estilo, trazendo para sua obra o "absurdo", o "insólito" e o "o inverosímil". Além de poeta, romancista, ensaísta e dramaturgo, também se dedicou às artes plásticas, sobretudo à pintura.

(http://www.mundocultural.com.br/ - morfosintaxe e grafia adaptadas para português de Portugal)

Foto: Google

Desenho de Mario Cesariny : A primeira lição

Friday, November 24, 2006

Abrir a janela e deixar a luz entrar

(Para a M.)

1. Vinda do espaço em que já nada havia para ganhar ou perder. Descrente e desistente: vida falhada, consumida em vez de consumada. Apocalipse prematuro, alma vazia. Excessivo, o cansaço de uma luta contra sombras. Solidão que se entranha na pele e me transforma em competente executora de tarefas: mecânica e previsível.
O que ficara dos sonhos, do tempo de acreditar? Espera interminável quando não se sabe a razão nem o que esperar…

2. Uma frase, depois um olhar: um sorriso e um toque na mão. O medo a ganhar terreno, insinuante e imponente. Dilema: sentir ou reflectir? Fugir, uma vez mais? Ou fechar os olhos e arriscar… Ousar, pelo menos desta vez, quebrar as regras, seguir os sentimentos, o instinto talvez… Respirar fundo e esquecer-me de lutar, só por um instante, só desta vez…

3.Fomos enganadas! Ensinaram-nos que está errado aquilo que o nosso corpo diz estar profundamente certo. E o coração que explode no peito como nunca o fez antes… E a ausência que se torna insuportável: saudade sólida até doer. Desejo a queimar os sentidos… a tua boca, os teus seios, a doçura do teu sexo, meu amor.

4. Dias perfeitos, agora. E o tempo, tanto tempo... Energia mal direccionada. Força aplicada a perseguir fantasmas. Lamentos? O passado conduz ao futuro e a coragem forja-se na luta, tantos o disseram antes. Verdades inelutáveis.

5. O sol nasce em cada dia, tão natural e correcto como a ternura nos olhos da minha amada. Difícil é entender que não nos entendam. Que prefiram o disfarce e nos tornem peritas na arte de esconder a estrela dentro do peito. Que salta em faíscas: num olhar que se demora e se esquece, nas mãos que se tocam ao de leve, involuntariamente. Um sorriso excessivo e contagiante, a felicidade nas pequenas coisas tão desprezadas, há tanto tempo esquecidas.

6.Parar o trânsito, juntar a multidão e gritar: o Amor é mais forte que a vossa cegueira! O vosso veneno estava a matar-me mas ela veio e deu-me a beber o elixir mágico da sua boca. Devolveu-me o ar e a luz em cada dia!

7.
Fico a olhar na minha mão
As marcas dos teus dedos.
Invisível sensação
Tem o teu cheiro
E o teu riso aberto.
Descobri que antes de mim
A minha mão exige a tua.
Descobri que se apaixona
Pelos teus dedos a minha pele.

Da minha estante I



E ao anoitecer

e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia

Al Berto ( 1948-1997)

Wednesday, November 22, 2006

Para depois



Para depois guardo

Esse olhar

Que agora não quero.


Amanhã

Num qualquer amanhã ao longe

Quando já nada me doer

Nem o teu riso for sequer

Matéria para poemas.

Quando a saudade for teoria

E o passado mito

Tirarei então da fotografia

O calor, os gestos, o toque,

A ternura derramada, tudo

Em que hoje me existes.

E então, meu amor,

Já com os olhos secos

E sem razões, então

Talvez eu fale desse teu olhar.

© Reservados os direitos de autor

Foto: Publico (adaptada)


Monday, November 20, 2006

De Madrugada Atiro Pedras Aos Espelhos


De madrugada
Atiro pedras aos espelhos.

De todas as noites famintas,
Cães às voltas pelas cidades,
Todas as manhãs metálicas,
Frio o sangue, o sexo e os pulmões
Fujo depressa.
Dos rios, dos lagos, das gotas de água
Fujo e sigo o rastro
Dos desertos
Feitos à medida exacta
Da minha morte de sede.

Parti os espelhos.
E assim não vejo
Não volto a ver nunca mais

O teu reflexo nos meus olhos.

© Reservados os direitos de autor

Foto: S.M.

Friday, November 17, 2006

Sugestões de Leitura II


Crónicas de Bons Costumes
Guilherme de MELO, Editorial Notícias, 2004

Pela mão de uma escrita clara, objectiva e, sobretudo, muito inteligente, este livro leva-nos a “espreitar” as mais comuns cenas do nosso quotidiano. Casos típicos que todos (re) conhecemos, em que talvez já nos tenhamos visto envolvidos como participantes ou meros espectadores… cenas da vida de todos os dias, daquelas que ouvimos contar nos transportes públicos, que lemos nos jornais ou comentamos com a colega de trabalho. Estórias a que não damos geralmente grande importância mas que marcaram vidas e que por nós passam, frequentemente em silêncio…
Da extrema ternura do conto O Beijo, à extrema violência patente na Sabedoria Popular ou nos Sinais, desfilam imagens numa escrita, às vezes, quase cinematográfica. São pequenos “trailers”, “flashes” sobre os “bons costumes” tão caros à dominante e institucionalizada hipocrisia social. Guilherme de Melo põe o dedo em todas as feridas (do adultério à violência doméstica e sexual, da homossexualidade clandestina ao gosto pela aparência e pela política da avestruz…), sem pré-conceitos, sem juízos de valor, sem conclusões: esses são deixados ao leitor para que pense o que melhor lhe aprouver…
Trata-se de uma leitura muitíssimo agradável, simples sem ser simplista, bem adequada a quem tem pouco tempo diário para dedicar aos livros, uma vez que a extensão de cada conto raramente ultrapassa as três páginas. Ler Guilherme de Melo é como uma conversa cativante e didáctica. Transparece nas suas frases, normalmente curtas, directas e concisas, toda a sua longa experiência de vida e um profundo humanismo (para além de uma sinceridade tocante e transparente).
Permito-me aqui recordar que este conceituado jornalista é autor de outras obras que merecem igualmente uma leitura atenta: “O Homem que Odiava a Chuva” (contos), “A Sombra dos Dias” (romance autobiográfico que “agitou” de alguma forma o portuguesíssimo marasmo cultural à altura da sua publicação) e “Gayvota” (um olhar (por dentro) sobre a homossexualidade), para referir apenas as mais conhecidas.
“Crónicas de Bons Costumes” pode ser uma porta de entrada para o universo ficcional de Guilherme de Melo. E certamente não daremos por mal empregue o tempo que por lá andarmos.


(texto publicado originalmente no boletim do Clube safo, Zona Livre, Março de 2005)

Pão nosso em cada dia

Amar-te nas coisas simples:
Um olhar envolvente
Um sorriso breve
Um toque ligeiro,
Quase acidental…
Frágeis fragmentos
Cristais de tempo,
Salpicos de vida guardados
À pressa, em segredo…

Para que não sejamos invejados
Pelos que têm o sangue negro
À força de atirar a primeira pedra
Contra a fronte do seu próprio medo.


© Reservados os direitos de autor
Foto: Reprodução de Matisse

Monday, November 13, 2006

Ob-sessão




E se eu não dissesse nada
Ficasse apenas aqui
Na tua frente
Saboreando o teu silêncio.
Na seda lenta do teu olhar
Respirasse a pele e a alma
Sós, no vazio absoluto
Sem palavras, sem ideias.
Sem destinos.

A um palmo de distância.

© Reservados os direitos de autor

Foto: Webshots

Sunday, November 12, 2006

Sexo dos Anjos



Dificilmente sabes de ti
Menos ainda dos outros…

Jura apenas
Sobre os momentos alucinados
Do teu corpo…

Friday, November 10, 2006

Na Ilha


Chegaremos de madrugada
Para nos amarmos em todos os recantos,
Esqueceremos a exaustão do caminho
Quando as nossas mão se soltarem
E logo ávidas de novo se enlaçarem.
Depressa os beijos hão-de matar em nós
Os últimos vestígios dos medos.

Deixa agora as minhas mãos,
Para que se percam lentamente
Em todas as veredas do teu corpo
Deixa-as de olhos fechados
A dançar poemas de fogo na tua pele
Deixa-as rir de loucura contigo.

Volta a pegar-lhe no fim,
A uma só, já saciada, e depois,
Leva-me, na ilha, a ver o mar…

© Reservados os direitos de autor
Foto: webshots

Sugestões de Leitura I

Os Amores de Safo, de Erica JONG (tradução de Maria José Santos), BERTRAND EDITORA, 2004

Verdade histórica, verosimilhança ou imaginação delirante? Ou, talvez, de tudo um pouco… Em todo o caso, estamos perante um agradável exercício de probabilidades…
Safo, a mítica poetisa da belíssima Ilha de Lesbos, terá viajado pelo Mar Egeu e pelo Mar Mediterrânico, terá sido hóspede das terríveis Amazonas e terá mesmo encontrado Orfeu numa visita à Terra dos Mortos, o que só por si a coloca ao nível do heróico Ulisses.
A contadora desta história com mais de 2600 anos e que se pretende uma viagem aos “lugares mais recônditos da mente da poeta que cantou o amor de forma inigualável” (conforme se pode ler na contracapa do livro), não poupa Safo aos mais elogiosos actos de heroicidade, coragem e inteligência. Já nas questões relacionadas com a orientação sexual da nossa rapsoda a autora não é tão eloquente. Um pouco presa ao politicamente correcto (não esqueçamos que a autora é norte-americana) parece algo preocupada em mostrar que a bissexualidade de Safo terá mais que ver com o facto de não lhe ter sido possível viver em pleno o seu grande amor, a paixão de toda a sua vida pelo poeta Alceu. E nós, pobres ignorantes, a acreditarmos que ela era lésbica não apenas por ter nascido na Ilha de Lesbos…
O livro passa, de certa forma, a imagem de que as mulheres se relacionam entre si acima de tudo por diversão, distracção ou como forma de satisfazer impulsos sexuais sem ter de recorrer aos homens e sem ter de levantar a questão da contracepção. Triste e redutora forma de abordar a homossexualidade de quem tão sensualmente cantou o amor entre mulheres, mas adiante… Haverá nisto fundamento histórico ou transparece apenas uma abordagem verdadeira e/ou inconscientemente homofóbica em que a narrativa contradiz, por vezes, a teoria inicial de que o amor não terá sexo? Cabe a cada leitor investigar, reflectir e avaliar.
Que este reparo crítico não invalide, porém, o prazer que tiramos de uma escrita linear, por vezes surpreendente, sempre muito agradável que nós agarra e conduz ao longo das mais de 300 páginas de narrativa das aventuras e desventuras da nossa Safo, completadas pela inclusão de alguns fragmentos de textos seus e, no final, por nove poemas que a autora escreve sob influência da bela poetisa. Tudo isto numa tradução honesta e clara a conseguir manter toda a qualidade poética da prosa de E. Jong.
A valer alguma reflexão sem se perder uma boa leitura, nesta humilde opinião.

(texto publicado originalmente no boletim do Clube safo, Zona Livre, em Janeiro de 2005)